terça-feira, 19 de agosto de 2014
"Finais de Agosto" - texto/ficção.
«Puxou a última baforada e atirou a beata para o chão. Tinha ficado uma boa meia hora a mirar as Ilhas sentado na borda do Cais e a pensar nos 2 amigos que tinham sido detidos pela Polícia Judiciária por participarem "activamente" na Greve Geral da semana passada.. Enquanto isso ia acabando o 6-pack que comprara no mini-mercado. E acumulava raiva.... Lá se decidiu então e levantou-se em direcção ao Ferry das 19h00.
Iria passar a noite na Armona, tinha lá um par de bares bacanos que passavam Ska, Reggae e algum Punk, onde a rapaziada se juntava com outra turma chegada de outras paragens. Maior parte de Lisboa e do Norte, mas muitos do estrangeiro. «Com sorte ainda conheço uma cámone giraça que me albergue na sua tenda.. » - pensou ele, entre um esgar maroto e mais um SG Gigante sacado do bolso da sua camisa. Levava apenas o seu harrington que lhe serviria de abrigo caso caísse a cacimba da noite, tabaco e uns trocos no bolso dos calções. Certamente iria encontrar o Elói que lhe emprestaria algum. Desde que tinha sido despedido da Conserveira por ter participado na Greve, que o Elói muitas vezes lhe servia de amparo em situações de aperto financeiro. Principalmente nas deambulações nocturnas de bar em bar... Ao caminhar para o barco ainda saúda Amadeu (também conhecido por Camadeu), velho pescador ocasional e bêbado veterano que pulula o seu tempo pelas várias tabernas locais, apanhando "camadas" de meia-noite. Entra no Ferry e logo se depara com um grupo de punks e skins a falar alto e partilhar litrosas. Deviam ser uns 7 ou 8 e, como não podia faltar, tinham 2 cães.
Aproveitou o balanço do 6-pack que tinha bebido e lá foi meter conversa quando o barco arrancava em direcção à Armona. Eram de Sevilha e estavam ali de passagem uns dias para depois subirem até ao Seixal, à Festa do Avante, pela costa alentejana.. Quando já estavam a meio caminho todos comentam os gigantescos graffittis e murais políticos das paredes da Zona Industrial.. O maior era mesmo um a gordas letras brancas, pintadas a rolo, que dizia GREVE GERAL 21 NVMBR com a foice e o martelo, mesmo ao lado estava um bombing do SEN, o famoso writer olhanense, e um outro mural com a cara do basco Argala que dizia: "Honra ao Gudari."
Passados 15 minutos o barco prepara-se para atracar e, enquanto todos se amontoam junto à entrada para sair, vislumbram uma outra pintada junto da zona de atraque com as garrafais letras RDA (República Democrática da Armona)..
Mô riu-se quando apontava a pintada aos sevilhanos e todos eles fizeram um sonoro brinde com as botelhas de cerveja. Encararam isto como umas excelentes boas-vindas à Ilha.
A rampa do barco é aberta e, agora, famílias inteiras com geleiras e sacos cheios de mantimentos comprados nos supermercados ou no Mercado de Olhão acotovelavam-se, em algaraviada, para serem os primeiros a sair e irem fazer a janta na sua casa de férias (ou tenda, em muitos casos). Um pitoresco alvoroço que dava gosto ver.
O sol já baixava, mas mesmo assim o calor convidava todo o grupo a beber uma “loira fresca” assim que saísse. E assim foi: Mô convidou todos a dirigirem-se para um dos primeiros bares da passadeira da Ilha, passadeira esta que atravessa a Armona quase toda em direcção à praia virada a Atlântico. Iam-se aproximando, em franca cavaqueira, começam a ouvir os acordes de Peste & Sida ressoando nos altifalantes do Bar Bukaneiro... Aromas a liamba invadem o ar e um pequeno grupo esfumaçava um pôrro mesmo à entrada, debaixo do telheiro que tinha o apiratado símbolo do bar. Entraram e lá estava, de facto, Elói encostado ao balcão..
«És pior c´ás moscas, môôôss!!!..», gritou Mô, «...sempre agarrade ao balcanite a lamber cerveja morta, hahahahhah...!». Elói e Gerry, o irlandês dono do bar que envergava uma t-shirt do St.Pauli, riram-se e saudaram-no com um abraço. O castiço bar estava quase vazio, ainda estava toda a gente na praia ou no mar, na faina.. Apresentaram-se todos, os sevilhanos e os portugueses, e ali ficaram, bebendo Cristais e petiscando tremoços ou anchovas salgadas em conserva, para puxar a sede e enganar a fome... Reggae e Ska eram a banda sonora deste lusco-fusco.
Enquanto o dia se esvai no pôr-do-sol vai chegando mais e mais turma da praia, ansiando por refrescar a goela...: "Sai mais uma rodada!" ouvem-se inúmeras vezes, a inúmeras vozes. A dada altura Mô puxa Elói à parte e começam a conversar: «Ah mano, atão comé que tájaver a coisa?... Que merda essa do Cárlinhes e do Salomão. O Salomão já é a 2a vez, a 1ª foi em Novembro». «Pois, temos de fazer alguma coisa para lhes dar apoio.. Nós cá fora e eles lá dentro. A advogada já sabe e tasse a mexer. Agora tems é tamêm de ser nós na ruas a mexer o cú por eles.. Já não é a primeira vez que os nossos vã´de choldra.. Nós temes SEMPRE que fazer alguma coisa..» E semi-cerra os olhos enquanto esmaga a beata no alpendre de madeira do Bukaneiro. Elói acena com a cabeça e diz: «Sim, vames fazer alguma coisa, primo..». (...).
No dia seguinte Mô desperta debaixo da sombra de um velho barco abandonado. Tinham todos ido passar a noite nas dunas, acabando várias garrafas de vodka e um par de grades de Cristal.
"Já o sol vai alte, Mô..." diz para si próprio. Levanta-se e sacode a areia da roupa. Olha em volta e vê vários sevilhanos ainda a dormir. Ao longe, no areal, vê já uma miríade de chapéus de sol...
É Domingo e joga o C.D. Marítimo Olhanense. Decide ir para a cidade sozinho ver a bola e falar com turma amiga acerca do que se passou com os amigos detidos.
Apanha o barco e vai para a cidade. Desempoeirado, esgueira-se pelas vielas do alvo e labiríntico "casco-velho" olhanense, encimado pelos cúbicos terraços. Ao passar à porta do Centro Social Okupado da Rua dos Sete Cotovelos , sai-lhe de lá uma moça mulata, com a tatuagem BDI no braço direito e com uma blusa do MC Pablo Hasel. Era Cely, rapper do Bairro dos Indios, um dos vários bairros sociais que orlam a cidade de Olhão. Tinha andado à escola com Mô e também ela se dirigia para o Estádio. Trocando umas impressões, apressaram o passo até lá chegarem e ela foi ter com um grupo de amigos.
Mô, por sua vez, entra no bar da claque, num pequeno pavilhão contíguo ao Estádio, e vai directamente falar com um dos que consegue os tikets mais baratos. Afinal de contas não tinha um chavo. O cheiro a choco-frito activa-lhe o apetite "dasse, olha o meu pequeno almoço" disse, e crava uns quantos ao moço do grelhador que lhe passa uma Cristal para a mão também..
Entra dentro do "bunker" e vai falar com Kinkadas, um dos mais velhos.. "atão mekié, prime tá tuude?"
"Ya Kinks, já sabes o que se passou com o Cárlinhes e o Salomão?"
"Sei pois, ganda merda.. filhes de puta. Mas deixa que temes hoje faixa pr`a eles, já estamos a pintá-la.."
"O quê? JÁ??"
"Atão foda-se, o qu`é que achas, que andamos a dormir môh..? ehhehe" E aponta para a sala do lado, onde uns 5 ou 6 pintam LIBERDADE PARA OS PRESOS DA GREVE! Estavam a pintá-la indoors pois, apesar do cheiro da tinta, era preferível a pintarem-na no exterior. A Polícia e os spotters podiam ver esta empreitada e implicar com a faixa.
"E a direcção do clube?? Nunca vão admitir a faixa, e vão-se chibar à bófia p`ra não a deixarem entrar.. Aliás, os próprios spotters vão querer consficá-la à entrada..!"
Pelo seguro, após uma reunião rápida, decidiu-se fazer entrar a faixa no decorrer do jogo para ludibriar a segurança na entrada. A bancada da claque, de nome TORPEDOS, ficava a uma altura relativamente baixa. Puxaram então a faixa com uma corda desde o exterior para o interior da bancada, fazendo o possível para não serem vistos pelas forças de segurança.
Era um estádio da 2ª divisão B mas tinha uma boa assistência, perto de um milhar, no mínimo, assistia a cada jogo em casa.
Assim que a faixa foi aberta (juntamente com 2 tochas de fumo), e suspensa no ar através dos cerca de 100 membros da claque, muitos aplausos se ouviram das outras bancadas também.. Ao fim e ao cabo, eram operários e operárias, pescadores, jovens, que faziam parte da massa adepta, e muitos deles haviam participado na Greve.
Estava acicatado um sentimento que reverberava em toda a Classe Trabalhadora da cidade.
O dono da Conserveira Petiz, Salvador Cerqueira, era presidente da direcção do Clube, e o seu maior accionista. Tinha sido na conserveira Petiz, a maior da cidade, que se tinham levantado os maiores protestos organizados aquando do anúncio dos cortes nos ordenados da Tróika. Os trabalhadores consideravam inadmissível que lhes fossem subtraindo os salários enquanto o lucro dos industriais conserveiros aumentasse. E, por causa da crise, a população cada vez consumia mais produtos em conserva por serem baratos...
No decorrer da Greve Geral o patrão tinha dado um "extra" a quem a furasse. Apesar de serem uma minoria, a fábrica estava a laborar nesse dia e Salomão (dirigente da Comissão de Trabalhadores da Petiz) e Cárlinhes, decidiram juntar-se a um piquete de Greve móvel que ia cortar uma linha ferroviária afluente. Esta linha fazia as mercadorias saírem desta Conserveira para a linha ferroviária principal, aquela que trespassa todo o Algarve desde Vila Real de Sto António até Lagos, e as faziam chegar até ao Entreposto de Faro. Aí seriam metidas noutros vagões, ou em camionetas, para o resto do país.
Arrancaram algumas vigas da linha férrea com a ajuda de malta do Sindicato dos Ferroviários. A seguir foram juntar-se ao piquete que estava aos portões da empresa, tentando impedir a saída de camiões com mercadoria..
Aí foram detidos quando o piquete estava a bloquear a saída de um camião dos "fura-greves". Como o condutor ia investindo com o veículo sobre os trabalhadores em greve, ambos se empoleiraram na cabine e deram um par de galhetas aos "furas". O camião parou, claro. Mas a polícia depressa interveio e deteve-os, sobre um cerrado coro de protestos e de sonoros petardos que caíam na direcção da linha frontal do Corpo de Intervenção...
Voltando à faixa aberta em pleno jogo, assim que Cerqueira viu, do outro lado do estádio, a faixa de 10 metros rapidamente ordenou aos spotters e polícia para a retirarem.
Em menos de um flash apareceu um grupo de bófias do CI, perto de uma dezena. E tinham um spotter à cabeça, um dos que regularmente acompanha os Torpedos nas suas deslocações a outros estádios..
Assim que o spotter deita mão à faixa, logo a claque a recolhe entre o seu seio. Os "robocops" tentam logo impedir que a faixa desapareça entre os Torpedos lançando-se entre o grupo, brandindo os cacetetes e acertando nalgum lombo menos atento..
Vá lá que a reacção do grupo foi rápida e conseguiram que a faixa saísse por onde entrou.
Primeiro penduraram-na na parte exterior da bancada, Kinkas e Mô agarraram-se ao pano e desceram por ela abaixo, como se estivessem a fugir duma prisão pelos lençóis. Quando chegaram ao chão recolheram-na debaixo do braço como puderam..
"BAZA KINKAS, FODA-SE, BAZA!!" Gritou Mô, ao passo que os outros lá em cima se riam por ver a cara dos bófias e spotters.. Olhavam com desdém para toda a cena, incapazes de apanhar a faixa...
Quando chegam à sede da claque, o "bunker", todos se riam e brindavam (incluindo a turma sevilhana, que entretanto tinha chegado da ilha e se juntava à galhofa). Não celebravam a vitória do jogo, pois tinham perdido 0-2 com o Desportivo de Elvas. Mas que importava isso??.. era o 2º jogo da época, ainda tinham muitos jogos para recuperar este solavanco na tabela.. Celebravam antes a "Vitória da faixa solidária” .
O cheiro do fumo das tochas mesclava-se com o cheiro a churrasco, e todos entoavam a música “YOU’LL NEVER WALK ALONE” tocada pelos Los Fastidios que o soundsystem torpedista debitava.
Mô sentia que, com uns companheiros assim, nunca se sentiria sozinho por mais dura que fosse a luta. Olhava em volta e via a expressão de contentamento de todos.. Estavam orgulhosos. Ele incluído.
Mas havia ainda muito a fazer.... »
Contribuição do leitor R.Srnm. Thanx.
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solidariedade,
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